terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Era uma vez

Imagem do livro O pássaro da cabeça (Quasi Edições,
2005) de Manuel António Pina (poemas) e de Joana
Quelhas (ilustração). Na capa, o pássaro amarelo de
bico laranja sobrevoa uma menina de tranças espevitadas.



















A Ana lê muito devagar,
só uma letra de cada vez.
Enquanto ela está a só uma letrar,
a Sara letra duas ou três.

A Ana tem tempo de lá chegar.
Os pês, os tês, os bês, os mês,
não fogem se ela se demorar.
A Sara acaba e começa outra vez.

A Ana lê e põe-se a pensar
nos quês, nos porquês, nos para quês,
e volta atrás para confirmar
porque, afinal de contas, talvez.

A Sara prefere entrar
nas palavras, nos desenhos, e ficar.
Existir nas histórias, em vez
de ver, viver; em vez
de pensar, de pausar, de perspicar,
ser ela a ser o que o herói fez.
Sai dos livros sem sair do lugar
e corre o mundo de lés e lés.

A Sara lê assim, a Ana mais devagar,
e depois ficam as duas a conversar.
A Ana conta: "Era uma vez..."
E a Sara: "Era eu uma vez..."

Manuel António Pina, "Era uma vez"
in O pássaro da cabeça, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005.